quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Melancolia nos Gramados

Se consideramos o futebol uma arte não é sensato pensar num time no qual os jogadores tenham posições fixas. Falar em lateral direita ou esquerda é um contrasenso dentro da nomeada arte futebolística. Só o estrategista, o técnico professor-doutor, permanece ortopédicamente atado em sua identidade, em seus conceitos e em seu saber sintético. No futebol não há verdade nem saber. Sendo um artista, o jogador é peça do jogo e, como tal, é movido por diferencias de forças intensivas cósmicas que fazem dele um enigma fora de qualquer identidade definida. Se um “volante” não surpreender a multidão com movimentos desconstrutores de qualquer geometria euclidiana, o voyeur do espetáculo vai pensar que ele está no ofício errado. O programa e a tática urdem o anti-jogo. Uma partida de futebol é uma obra aberta onde a ciência é deslocada pela ficção. Se o artista não desliza pelo gramado como se este fosse um ringue de patinação ele é um atleta, e não um ficcionista. Desafio alguem que não tenha visto Pelé atuando sem flutuar pela grama. A plasticidade sensual de uma “bicicleta” do Rei não poderia se percebida a não ser por um olhar turbinado pela lógica de Eros. O próprio artista da bola não é guiado por seu cérebro, por sua razão. Leonardo da Vinci jamais fez siquer uma obra racional e a Mona Lisa não pode ser explicada por nenhuma filosofia. Da mesma forma o pensamento lógico, cartesiano, não explica a “mão de deus” enquanto Maradona pairava suspenso no ar, na pequena área, sustentado por um espírito que norteia os deuses míticos dos estádios. A simetria fechada não condiz com o drible do gênio. Neste gesto insano, forma e conteúdo devem se demitir do discurso que pretende descreve-lo. Em que categoria fixar o “elástico” inventado por Rivelino? A noção clássica de tempo e espaço é por demais ingênua quando vemos um Romário aparecer num ponto, dentro do retângulo do campo, onde seria impossível ele estar naquele dado momento do jogo; mas é ali que ele, como um fantasma hamletiano, aparece. Isto mesmo, um craque é dado a aparições espectrais. Só os momentos místicos podem oferecer a estranheza que nos assola nesse instante. Se meu olhar vê uma arrancada bizarra, só o gol, a bola na rede, me soa como familiar. Pode um sujeito, numa partida de futebol, correr quarenta ou cinqüenta metros com a bola colada na chuteira como se não houvesse mais ninguém no campo? Só ele? Quando um artista deste quilate olha para os paus da baliza, a defesa adversária não é mais nescessária; ela prova sua contingência com um desrespeito-ao-outro só permitido aos iluminados pelos anjos do futebol-arte. Se o sobrenatural comanda as passadas de um Neynar, a natureza, os rios e as ventanias, devem parar para se confessarem inferiores. Nem naureza nem cultura, eis o espaço sagrado reservado a um Messi, um Zidane. Champolion ficaria perplexo com os hieróglifos esotéricos inventados por estes caras que, do além, criptografam cenas imemoriais. Se a física não explica o vôo de Banks, tampouco a cabeçada de Pelé, Einstein, com eles e por eles, é realocado nos bancos ginasianos onde E não é igual a mc2. O Fiat-lux do Velho Testamento se curva em reverência ante a parábola-elíptica, esquizofrênica, que a bola descreve numa falta batida por Zico; Deus aplaude, humilde.
     Não, o Flamengo x Santos não foi uma partida, foi A Partida de Futebol. E se este jogo pode ser jogado assim, que me perdoem os entendidos, os especialistas, me acordem daqui a dez mil anos; do jeito que se anda maltratando a bola por aí, parece que estes noventa minutos trangrediram e subverteram tudo o que vemos ultimamente no cotidiano do futebol brasileiro. Não foi este nem aquele protagonista que impressionou, o personagem é o próprio jogo em si: O JOGO. Este O JOGO surpreendeu, assombrou mesmo, porque provou que o futebol é arte, e não o que vemos corriqueiramente por este país afora.
    Como é possível não nos darmos conta de um luto histórico, quando a vida da Criação é encenada com tanto vigor?; tudo o que veio antes, e o que virá depois, já se configura como morte e enfado. Só os curiosos de última hora e os calouros apressados podem afirmar um rasgo de alegria com o Flamengox Santos do dia vinte e sete de julho de 2011. O amante do misticismo, do ilógico, do estranho que molda a verdadeira beleza do Belo TEM que estar melancólico só de pensar na próxima rodada. De qual amanhã viveremos? Jamais veremos ao vivo a brincadeira nem o deslizamento sísmico deste Famengo x Santos. Como rever aquelas torções plurais de um Angelim, espasmos despidos de gramática, convulsões desnudadas de semântica, quando submetido ao desvario do drible de Neymar? Sim, entristeçamo-nos; só veremos daqui em diante, depois d ‘O JOGO, a mesmice de um formalismo tosco, num bom acabamento tático sem o brilho do acaso ou a luz do impensável. Preparemo-nos para o léxico das botinadas.
     Tristes são aqueles que assistiram ao Flamengo x Santos em vinte e sete de julho de 2011. Em nome de Pelé, de Neymar, de Ronaldinho Gaúcho, Amém.

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