quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A Salsicha Crepitante da Vez.

Sean Connery jamais teve licença para matar. Era seu personagem, James Bond, contracenando com todas as Ursulas Andrews do planeta que, como funcionário da Rainha da Inglaterra, possuia tal privilégio. O assassinato autorizado por uma força política democraticamente constituida faz com que o crime seja parte integrante do imaginário de uma nação que domocratiza o ser do fora-da-lei. Qualquer estudante de psicologia da PUC, sem querer se nelsonrodrigueano, sabe que o povo tende a se identificar com o Chefe, o Governante.
     O segundo caderno de O Globo, no dia 7 de maio último, traz um artigo de José Miguel Winsnik no qual o autor comenta o livro de um filósofo italiano, Giorgio Agamben, que trata da biopolítica, isto é, “da sujeição do corpo, da matéria da vida e da morte, pelos poderes contemporâneos”. Agambem nos revela uma tese interessante, na qual postula que o poder soberano, aquele que circula dentro da lei que ele mesmo dita, aquele que dá as ordens de vida e de morte, está espelhado com a figura do pária. O banido, ou o pária, no polo oposto, está em posição de ser morto sem punição para aquele que o mata e sem direito a um ritual religioso que sacraliza a sua morte. Em seu artigo Winsnik está comentando o assassinato de Bin Laden, “localizado, morto, objeto de um rito pró-forma e riscado do mapa de maneira a não deixar traço”. Osama, o feio, assassinado por seu duplo, Obama, o bonito, fazem em espelho o Mesmo em posição invertida, onde a Bêsta e o Soberano jogam um jogo no qual o Direito, como uma força autorizada, oficializa a Violênçia como um Ser da Lei institucionalizada.
     No final do mês de abril o mesmo O Globo publica duas notícias de fundo, em dias diferentes, na mesma semana. Na primeira informa-nos que o corpo de Wellington, o chacinador de Realengo, não tendo sido reclamado pela família, foi enterrado em cova rasa por dois coveiros que praguejavam por sobre seu caixão. A sociedade brasileira, representada pelos coveiros, já fizera no primeiro minuto pós chacina, o “diagnóstico” de Wellington: ateu-aidético-muçulmano-psicótico.  A outra nota, dois ou tres dias após, noticia que cinco religiosos, kardecitas, vestidos de branco, rezaram e depuseram flores em seu túmulo.
     Ainda no início de maio, o jornal Hoje nos mostra uma reportagem na qual apresentam um filme, realizado pela família de um paciente que está saindo de alta do Hospital Rocha Faria. Trata-se de um doente terminal, portador do vírus da AIDS, mostrado saindo do hospital em uma maca, entrando numa ambulância, depois chegando em casa onde, vinte minutos após, morreria. O doente-pária, ocupando um leito, é submetido a uma lógia do Estado-soberano que, acima da lei e fora dela, estabelece um humanismo generoso e justo: “há vagas”, mesmo que para isto tenha que assassinar um já-morto por decreto. A Besta e o Soberano, o Soberano e a Besta, o Pária e o Estado, o Estado e o Pária. Estado de direito ou de excessão? Arnaldo Bloch, no Segundo Caderno do mesmo O Globo de 7 de maio nos diz que habitamos um hotel infecto, “o grande hotel da aldeia que era para ser global mas, pelo jeito, está virando, ou nunca deixou de ser, a casa da mãe joana mundial”.
     Recentemente, o ex ministro da Fazenda Delfim Netto desculpou-se publicamente por deixar escapar, no programa “Canal Livre” da Rede Bandeirantes, referindo-se as empregadas domésticas, a seguinte pérola semântica: “Quem teve este animal, teve, quem não teve, não terá nunca mais”.
     Em antropologia social nomeamos estes sujeitos de “protagonistas” do teatro do mundo, da cena social. Os protagonista soberanos e representantes do Estado seriam Obama e Delfim Netto; os protagonistas párias seriam as empregadas domésticas, Wellington-psicótico-muçulmano, o paciente aidético, Bin Laden.                                  
     Jacques Derrida, talvez o filósofo de maior prestígio do século XX, no livro O animal que logo sou diz que devemos estar atentos para a animalidade do Rei, da majestade, do soberano. Os gestos e as decisões da autoridade constituida revelam uma animalidade que nenhum animal, dito irracional, é capaz de perpetrar.
      Até onde vai a bestialidade da soberania? Por outro lado há soberania na bêsta, no pária? O mesmo Jacques Derrida, ministrando seu seminário de 2001/2002, intitulado A bêsta e o soberano na aula de 30 de janeiro de 2002 nos leva a pensar: quem diz, ou faz besteira, é uma bêsta? Se a bêsta está do lado do animal ela, a bestialidade, se encarna na força coercitiva do Estado, no poder mais poderoso, mais alto, mais forte e mais bonito, no Chefe, ou seja, naquele que vai establecer as verdades da justiça, da ética e do dever. Nada disto é novidade; há três mil anos os gregos já pensavam na moralidade do Estado em conflito com a moralidade individual.
     Nós, os médicos, somos bêstas ou soberanos? Ao exercermos a medicina como funcionários públicos estamos do lado do pária ou do lado do soberano? Ao representarmos o Estado representamos simultaneamente o direito do doente, das massas, dos párias? Se por um lado somos parte integrante do Poder Público, na interface de nossa ações tambem integramos, ou pelo menos deveríamos ser parte integrante do discurso das massas. Principalmente quando reinvidicamos recursos para a realização de atos médicos dentro dos preceitos de nosso  Código de Ética. O paradoxo está no fato de que, como funcionários do Estado, de dentro, como soberanos, representamos um poder destituido dos mínimos postulados éticos que dariam suporte materiais a nossas práticas cotidianas. Assim, de dentro, ao reinvidicarmos, ao demandarmos recursos, representamos aquele que está fora, o pária. Somos, então, soberanos E bêstas. Se nossa linguagem é soberanamente bestial, no teatro do mundo tornamo-nos protagonistas de um personagem que possui uma face dupla, e nossa discursividade enuncia simultaneamente duas verdades contraditórias. Estamos dentro mas, paradoxalmente, tambem estamos fora do sistema dominante e coercitivo.
     Estaremos nós preparados para nos tornarmos servos e serviçais de um Estado que pratica a banalidade do mal? Já banalisamos a banalidade do mal que representamos quando, como médicos, num hospital público, temos que decidir quem vai morrer, e não como vamos conduzir nossos atos em prol do bem do outro? Como James Bond, possuímos autoridade para matar, para deixar morrer? Como soberanos ou como bêstas de um bestialógico político que assombra nosso cotidiano? Fato é que fazemos parte de uma biopolítica que nos impõe a assunção de um lugar objetivado dentro da “casa da mãe joana mundial”, este hotel infecto, como disse o acima citado Arnaldo Bloch. Afinal exercemos, ou não, uma microfísica do poder, como disse Michel Foucault, perversa, violênta e brutal? Ainda que subjetivamente eu possa usar meu aparelho de pensar o pensamento para ajuizar criticamente tal realidade.
      Mas não me refiro aqui a nunhuma burrice atávica. Nós, humanos, somos desejantes, desejamos o mal, e somos muito inteligentes quando engendramos nossas omissões ou ações políticas. O que não nos faltam, em nossa soberana Humanidade, são álibis bem confeccionados quando articulamos nossos crimes e pecados cotidianos. O que aqui nomeio de Estado Soberano é um mero ente de razão, um ser abstrato confeccionado por indivíduos reais. Qual o telefone do Estado, da Realeza, qual o numero do telefone celular da Grande Democracia, ou seu e-mail? Aquilo que nomeamos de humano é ou não é uma máquina de guerra e de embrutecimento? Não querer saber de nada disto não nos torna indigentes do saber? Porque não nomeamos com todas as letras o sujeito da brutalidade e da bestialidade? Sim, posso matar o outro, desde que me autorize a designá-lo como um animal, uma bêsta, um Welligton ou um Bin Laden. A fera é o outro. Mas o nome do assassino que assassinou o feroz jamais será nomeado. É o Chefe de Estado, o Rei, o Fuhrer, que se dilui como representante de uma Nação Soberana e, em nome do povo, vai apedrejar uma adúltera em praça pública. A “justiça foi feita, o povo esta vingado!”, declarou Barak Obama. Em nome de qual Direito Internacional, de qual Lei, de qual Povo, de que Justiça, quem é o Justiceiro, quem Legifera? O que pensar sobre o silencio abismal da Organização das Nações Unidas? Ou de sua tagarelice inoperante, farsante e onomatopaica. Quem amordaçou a ONU? O mundo hoje é uma história de mistérios insondáveis, um conto de Edgar Alan Poe ou de Jorge Luiz Borges, um filme de Hitchock ou uma novela de Sthephen King? Praticamos o amor no tempo do cólera ou no tempo da cólera?
     A falsidade da verdade reside no fato de que na democracia de Obama, o bonito, quem não se alinha ao seu discurso e métodos terroristas, quem não está a favor, está contra ele, correndo o risco de ganhar uma passagem de ida para Guantánamo. O estilo de um George Bussh, sua boçalidade mitômana, parece que veio para ficar. Em nosso mundo, a verdade é falsa. Da mesma maneira, na mesma lógica, o médico funcionário público não pode se alinhar ao pária e denunciar os crimes que acontecem na gestão da saúde pública em nosso país. Tal gestão é negligente, eis o delito. Mas quem, afinal é negligente? O Ministro, o Bispo, a máo invisível do Estado, ou o Dr. Fulano de Tal que assinou a alta do pária, do terminal, do aidético? Ou será que não sabemos  quem vai ser condenado quando a família deste doente processar o Estado? Será o servente de plantão que não limpou o cocô do paciente no dia em este que foi condenado a se retirar do hospital?
     Em 25 de maio, um dia após o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ter sido ovacionado de pé em seu discurso no Congresso dos Estados Unidos em 29 ocasiões distintas, Aluf Benn, colunista do jornal israelense Ha’aretz, escreveu: “Ele manteve sua coalizão e deixou as portas abertas  ao não se comprometer com nada”(grifo meu).
     Os políticos tem uma rara agilidade retórica e fazem mágicas extraordinárias com a linguagem. Há de se ter pujante competência discursiva para, no Congresso da nação mais poderosa do planeta, SEM DIZER NADA sobre a questão da paz no Oriente Médio, ser aplaudido de pé por 29 vezes. Serão os congressistas americanos umas bêstas? O Barak, no dia seguinte do discurso de Netanyahu, foi para a Inglaterra e, discurssando no Westminster Hall, discordou veementemente do primeiro ministro israelense. Discordou do nada? Do nada a dizer? Sem dizer nada ou dizendo que discordava do nada? Os  líderes do mundo, nossos soberanos, são diligentes o suficiente para atingirem seus propósitos, isto é, suas respectivas reeleições.
     Quanto ao Oriente Médio, os israelenses ou fazem de seu país uma democracia laica, deixando de ser um Estado judeu para admitir que um Estado de direito tem de ser democrático e não judeu; ou afirmam o caráter judeu de seu Estado e aceitam que, tornando-se religioso e racista, deixem de ser israelenses e democráticos. Permanecendo judeus no sentido do judaísmo ou da judeidade, no primeiro caso optariam por serem cidadãos israelenses tanto quanto os não-judeus. Na segunda hipótese deixariam de ser cidadãos israelenses e se assumiriam como judeus no sentido da nação, da etnia, da raça e de um Deus vingador e assassino. Elisabeth Roudinesco, psicanalista, historiadora, francesa e judia, afirma: “Perderiam (assumindo-se como judeus-nação) então, certamente aquilo que constitui a universalidade do povo judeu e sua capacidade de resistência a todas as catástrofes; uma maneira única de saber transmitir à humanidade a idéia de que nenhum homem pode ser reduzido à sua comunidade, às suas raízes e a seu território” (grifo meu) [Roudinesco E., Retorno à questão Judaica, p.244, Jorge Zahar Editor, 2010].
     Nós, brasileiros, somos as bêstas que irão aplaudir de pé o que Barak Obama efetivamente disse dirigindo-se aos parlamentares inglêses? Cito: ”Países como China, Brasil e Índia estão crescendo, criando mercados e opotunidades para nossos povos. Virou moda questionar se essa ascenção vai acompanhar o declínio da influência americana e européia pelo mundo. Segundo esse argumento, esses países representam o futuro e o tempo da nossa liderança é passado. O argumento é errado. O tempo para nossa liderança é agora”.
     A mensagem foi clara: “Podem tirar seus cavalinhos da chuva, a hegemonia continua sendo a nossa, a de seus Soberanos, Principes, Maonarcas e Chefes”. Se Obama, o bonito, quis afirmar a superioridade  de “sua raiz e seu território”, certo é que também afirmou o fato REAL pertinente ao declínio da imperial economia EUA-Europa, vide Espanha, Portugal, Irlanda e Grécia. Com o assassinato de Bin Laden a reeleição de Obama, o good gay, está quase que garantida, e, assim fortalecido no cenário político da “casa da mãe joana mundial”, lá foi ele fazer um churrasquinho com James Cameron, o Primeiro Ministro inglês. O jornal da Globo News do dia 26 de maio mostra, mangas arregaçadas, Obama em total sintonia com Cameron, distribuindo hamburgers e salsichas aos convidados do grande festim dos soberanos.
     É, está mesmo difícil os sujeitos da modernidade se entenderem. Outro dia, numa mesa de bar, presenciei um debate interessante, interminável, no qual se discutia sobre o casamento do filho homossexual de um dos participantes do colóquio: ”Afinal, voce vai ou não, na festa, tirar seu genro para dançar”?
     Não, o paradigma do século XXI não começou no nine eleven, tampouco no Watergate. O terceiro milênio ele se iniciou quando uma secretária “salário mínimo” fez um felattio shakespeareano, arcaico, milenar, metamorfoseando ovideanamente o Phallo do Soberano num dejeto dessacralizado, desconstruindo divindades e resmasteurizando dinastias míticas, fazendo de Sua ereção deimórfica um parco resto na psicopatologia da vida cotidiana.
     Se Obama tirou Cameron para dançar, se o Festival de Besteiras que Assola o Planeta anda de vento em pôpa (saudades do Stanislaw Ponte Preta) e se “virou moda” as asneiras soberanas serem pronunciadas em alto e bom tom nos microfones planetários, nós, as Bêstas emergentes daqui, ficamos matutando: “Quem esses caras fritarão em seguida”?
     Sempre haverá, pós-Clinton, nas curvas do tempo e no trepidar silencioso destes espaços infinitos (Pascal), uma salsicha da vez.
     Por falar em trepidar, convido os leitores a me acompanharem numa aventura científica impressionante pela sua aparência de jocosiadade e ficcionalidade. Ferdinand de Saussure, o Pai da linguística, inspirador de Lacan, Jakobson, Barthes, e outras celebridades mais no mundo do estruturalismo, dedicou-se a análise de um texto apócrifo, de um etnólogo que descreveu o “diálogo” por ele presenciado entre os integrantes de uma dada tribo, sabe-se la aonde, tampouco quando teria ela, a tal tribo, existido. Vou reproduzir alguns recortes do documento que Saussure leu. Dizia o seguinte: “Essa tribo. Talvez nos surpreendamos com o fato de os barulhos assim produzidos pelo ânus podem ser utilizados para a expressão do pensamento. Assim como admitimos que os habitantes das Ilhas Canárias façam uso de seus assovios para os mesmos fins...semelhantes preplexidades...os indígenas conseguem variar a emissão do som de seus ânus...Como o tempo urgia, passei apenas poucas semanas com os indígenas. Tempo insuficiente para levar a bom termo duas tarefas que, algum dia, será necessário levar a termo...A primeira será fazer o inventário completo das flatulências utilizadas pelos indígenas. Trata-se, em suma de construir seu alfabeto...Para dar um exemplo talvez muito simples, é evidente que as flatulências emitidas por um idoso obeso são diferentes das que são produzidas por uma delicada jovem em idade de se casar...”[Arrivé M., Em Busca de Ferdinand de Saussure, pp. 223-224, Parábola Editorial, 2010].
     Ferdinand de Saussure vai comentar o texto: “...Grande coisa! Eles poderiam ter apelado a outros ruídos, como os assovios dos indígenas das Canárias – diria eu os sibilantes (grifo de FS)? Ou qualquer outra coisa. Contudo, nosso autor se apressa muito ao assimilar crepitantes e sibilantes...”[ibid, p. 228].
     Para dançar a valsa aromática dialogada entre Soberanos Sibilantes e Soberanos Crepitantes talvez, efetivamente, tenha ficado mais confortável a Bêsta do terceiro mundo emergente não ter sido convidada a soletrar tão nobre alfabeto linguageiro.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Melancolia nos Gramados

Se consideramos o futebol uma arte não é sensato pensar num time no qual os jogadores tenham posições fixas. Falar em lateral direita ou esquerda é um contrasenso dentro da nomeada arte futebolística. Só o estrategista, o técnico professor-doutor, permanece ortopédicamente atado em sua identidade, em seus conceitos e em seu saber sintético. No futebol não há verdade nem saber. Sendo um artista, o jogador é peça do jogo e, como tal, é movido por diferencias de forças intensivas cósmicas que fazem dele um enigma fora de qualquer identidade definida. Se um “volante” não surpreender a multidão com movimentos desconstrutores de qualquer geometria euclidiana, o voyeur do espetáculo vai pensar que ele está no ofício errado. O programa e a tática urdem o anti-jogo. Uma partida de futebol é uma obra aberta onde a ciência é deslocada pela ficção. Se o artista não desliza pelo gramado como se este fosse um ringue de patinação ele é um atleta, e não um ficcionista. Desafio alguem que não tenha visto Pelé atuando sem flutuar pela grama. A plasticidade sensual de uma “bicicleta” do Rei não poderia se percebida a não ser por um olhar turbinado pela lógica de Eros. O próprio artista da bola não é guiado por seu cérebro, por sua razão. Leonardo da Vinci jamais fez siquer uma obra racional e a Mona Lisa não pode ser explicada por nenhuma filosofia. Da mesma forma o pensamento lógico, cartesiano, não explica a “mão de deus” enquanto Maradona pairava suspenso no ar, na pequena área, sustentado por um espírito que norteia os deuses míticos dos estádios. A simetria fechada não condiz com o drible do gênio. Neste gesto insano, forma e conteúdo devem se demitir do discurso que pretende descreve-lo. Em que categoria fixar o “elástico” inventado por Rivelino? A noção clássica de tempo e espaço é por demais ingênua quando vemos um Romário aparecer num ponto, dentro do retângulo do campo, onde seria impossível ele estar naquele dado momento do jogo; mas é ali que ele, como um fantasma hamletiano, aparece. Isto mesmo, um craque é dado a aparições espectrais. Só os momentos místicos podem oferecer a estranheza que nos assola nesse instante. Se meu olhar vê uma arrancada bizarra, só o gol, a bola na rede, me soa como familiar. Pode um sujeito, numa partida de futebol, correr quarenta ou cinqüenta metros com a bola colada na chuteira como se não houvesse mais ninguém no campo? Só ele? Quando um artista deste quilate olha para os paus da baliza, a defesa adversária não é mais nescessária; ela prova sua contingência com um desrespeito-ao-outro só permitido aos iluminados pelos anjos do futebol-arte. Se o sobrenatural comanda as passadas de um Neynar, a natureza, os rios e as ventanias, devem parar para se confessarem inferiores. Nem naureza nem cultura, eis o espaço sagrado reservado a um Messi, um Zidane. Champolion ficaria perplexo com os hieróglifos esotéricos inventados por estes caras que, do além, criptografam cenas imemoriais. Se a física não explica o vôo de Banks, tampouco a cabeçada de Pelé, Einstein, com eles e por eles, é realocado nos bancos ginasianos onde E não é igual a mc2. O Fiat-lux do Velho Testamento se curva em reverência ante a parábola-elíptica, esquizofrênica, que a bola descreve numa falta batida por Zico; Deus aplaude, humilde.
     Não, o Flamengo x Santos não foi uma partida, foi A Partida de Futebol. E se este jogo pode ser jogado assim, que me perdoem os entendidos, os especialistas, me acordem daqui a dez mil anos; do jeito que se anda maltratando a bola por aí, parece que estes noventa minutos trangrediram e subverteram tudo o que vemos ultimamente no cotidiano do futebol brasileiro. Não foi este nem aquele protagonista que impressionou, o personagem é o próprio jogo em si: O JOGO. Este O JOGO surpreendeu, assombrou mesmo, porque provou que o futebol é arte, e não o que vemos corriqueiramente por este país afora.
    Como é possível não nos darmos conta de um luto histórico, quando a vida da Criação é encenada com tanto vigor?; tudo o que veio antes, e o que virá depois, já se configura como morte e enfado. Só os curiosos de última hora e os calouros apressados podem afirmar um rasgo de alegria com o Flamengox Santos do dia vinte e sete de julho de 2011. O amante do misticismo, do ilógico, do estranho que molda a verdadeira beleza do Belo TEM que estar melancólico só de pensar na próxima rodada. De qual amanhã viveremos? Jamais veremos ao vivo a brincadeira nem o deslizamento sísmico deste Famengo x Santos. Como rever aquelas torções plurais de um Angelim, espasmos despidos de gramática, convulsões desnudadas de semântica, quando submetido ao desvario do drible de Neymar? Sim, entristeçamo-nos; só veremos daqui em diante, depois d ‘O JOGO, a mesmice de um formalismo tosco, num bom acabamento tático sem o brilho do acaso ou a luz do impensável. Preparemo-nos para o léxico das botinadas.
     Tristes são aqueles que assistiram ao Flamengo x Santos em vinte e sete de julho de 2011. Em nome de Pelé, de Neymar, de Ronaldinho Gaúcho, Amém.