sábado, 29 de outubro de 2011

Conto: GENIALIDADE

   
     Em 1931 surgiu um trabalho num periódico científico alemão intitulado: “Sobre as Proposições Indecidíveis dos Principia Mathematica e Sistemas Correlatos”. Seu autor, que contava com vinte e cinco anos de idade, era em jovem vienense raquítico, introvertido, caladão e anti social. Chama-se Kurt Gödel. O curto texto deste homem esquizotímico convulsionou o mundo da matemática e inaugurou uma nova era para o pensamento filosófico pós moderno.
    Jonh Dawson era um lógico da universidade de Princeton que, tendo resolvido “exumar” Gödel após sua morte, ocorrida em 1978, acabou descobrindo um tesouro na própria casa do autor do revolucionário Teorema da Incompletude. Dawson deve ter ficado estarrecido com o que viu. Um amontoado de caixas e baús espalhavam-se desordenadamente pelos aposentos, contendo centenas, milhares de anotações das mais diferentes categorias. Havia de tudo no caos, desde lista de roupas e notas de lavanderia, fotos de família, texto de ensinamentos bíblicos de testemunhas de Jeová, artigos de revistas populares e científicas, até esboços manuscritos de textos científicos não publicados do próprio Gödel. Este legado encontra-se hoje guardado e preservado na Biblioteca Firestone, na universidade de Princeton.
     O que se segue é um documento que faz parte deste acervo. Nada sabemos se o arredio autor escreveu-o para si mesmo ou se um dia desejou publicá-lo, sabe-se lá aonde:
     “Meu nome é Kurt Gödel, sou matemático e dizem que sou um gênio. Ainda em vida adquiri a fama, e me pagam para isto, de ser um dos maiores acadêmicos do século vinte a me dedicar à utilidade do conhecimento inútil. O nivel intelectual da humanidade, queiramos ou não, parece que de alguma maneira depende deste tal de “conhecimento inútil”. Do contrário não me pagariam para pensar. Se alardeiam por aí que sou o maior lógico que, desde Aristóteles, já existiu é porque a matemática é fundamental para todas as ciências. Eu, de minha parte, tenho serias desconfianças quanto a “utilidade” de um pensamento articulado logicamente àquilo que, nós, humanos, nomeanos de “nível intelectual”.
     O que pretendo aqui, ao escrever para leitores e cidadãos comuns, é dar a ententender para a posteridade como um nomeado “gênio” da minha estirpe funciona. Até onde podem ir minhas lembranças de infancia, seguramente sei que desde os meus três anos de idade já configurava com clareza, em minha lógica emocional, a incompetência de meus pais em relação as terefas, decisões e posturas quanto aos cuidados parentais. Sim, foi grandiloquente o meu mal estar infantil, minha angústia, face a ignorância e a inoperância da dupla em relação ao mínimos detalhes pertinentes à minha criação. Até hoje desconfio de que esta questão é mais universal do que supõe a minha vã filosofia. Na verdade, acho realmente que este foi o primeito teorema que descobri. Parece que Freud já provou esta tese. Fato é que aos três anos de idade eu já era mais inteligente que meus pais. A partir deste postulado, tornei-me um curioso. E, aos 25 anos, produzi uma prova na lógica matemática que estarreceu o mundo acadêmico do século XX.
     Sou, sempre fui, uma pesoa contida, retraida mesmo. O que expresso aqui para o leitor comum certamente terá o mesmo estilo. Se o meu célebre teorema hoje pode ser encontrado na Enciclopedia of Philosophy, se recebi o título honorário de “doutor” por Harvard, Yale e Princeton, se meu teorema foi eleito como a descoberta matemática mais importante do século e se meu único e, portanto, melhor amigo foi Albert Einstein, estas não são questões que me concerne comentar. O que me interessa dizer passo a fazê-lo agora.
     Em primeiro lugar quero esclarecer que o pensamento matemático não é pensado da mesma maneira que voce, meu caro leitor, pensa o seu pensamento. É muito simples explicar como isto funciona. Se eu pegar um objeto que se encontra em cima de minha mesa, por exemplo, esta caneta, e mostrá-la a voce pergundando-lhe “O que é isto que agora seguro entre meus dedos?”, voce certamente me responderá que “isto que está sendo segurado é uma caneta”. Certo? Não! Não para um matemático. Como matemático sou obrigado a te solicitar: prove! É a partir daí que as pessoas comuns começam a achar que nós somos um bando de malucos. Ou, no mínimo, um bando de chatos. É verdade que por duas vezes em minha vida cheguei a ficar internado em clinicas psiquátricas, mas isto é uma parte da história que não quero discutir aqui.
     É evidente que no meu dia a dia, quando me utilizo de uma caneta para produzir um texto, não me interessa ficar pensando qual é a verdade presente no objeto “caneta”. Todavia, quando estou escrevendo um texto científico, tenho que me valer de uma ferramenta, a lógica formal, que sempre pretenderá enunciar algo dentro da “verdade”, da “certeza”, da “incorigibilidade” e da “aprioricidade” do que estou produzindo como ciência teórica. Em suma, não é o objeto “caneta” que interessa a nós, cientistas da lógica e da matemática pura. Nosso “objeto” é sempre o enunciado sobre um objeto: “isto que está sendo segurado é uma caneta” é um enunciado verdadeiro? Incorrigível? Só haverá uma certeza se eu provar logicamente a verdade do enunciado. Se “isto que está sendo segurado é uma caneta” é uma verdade axiomática, então, meu caro leitor, enuncie os teoremas para provar o axioma. Para tal, a lógica formal deve ser teoricamente capaz de matematizar qualquer enunciado.
     É certo que as vezes me excedo em minhas análises com a lógica formal. Em 1947 estavamos, eu e Eisntein, nos dirigindo para o prédio onde fica o escritório que representa o Departamento de Estado Americano, o palácio da Justiça Federal de Trenton. Eu estava indo prestar o juramento para receber a cidadania americana. Durante algumas semanas só o que fiz foi estudar a Costituição daquele país que logo me acolheria. Assim que Einstein entrou no carro eu lhe disse:
     - Albert, a Constituição americana tem um erro lógico. Sua democracia com certeza um dia de deteriorará numa tirania.
     Einstein ficou muito perturbado com minha fala e permaneceu o tempo todo, durante o trajeto, contando historietas engraçadas para me distrair. Diante do juiz Philip Forman, o mesmo que ministrara a cidadania para Einstein, externei minha preocupação a respeito da falha na Constituição. Ainda bem que o próprio Forman mudou de assunto e o ato foi realizado a contento. Neste dia, Albert quase me matou, tamanha era sua indignação para com meu discurso.
     Mas voltemos ao pensamento do “tipo” matemático. Nós trabalhamos com elementos. O que são “elementos”? Quando confeccionamos teoremas nossa matéria prima é aquilo que denominamos “elementos”. A mística judaica nos oferece uma dinãmica bastante interessante para entendermos a lógica do pensamento matemático. Quando um místico cabalísta pretende “tocar” no nome de Deus ele trabalha, na leitura que faz da Torá, com as letras do alfabeto hebraico nela contida. Portanto, nomear o inominável, o que nem face possui, o impronunciável YHWH, é uma operação que consiste em combinar letras, o que só os iniciados estão aptos a realizar. Na verdade, para a filosofia rabínica o mundo da Criação se baseia no desenvolvimento de forças que estão ativas em Deus Mesmo. A doutrina mística postula algo como a existência da alma das letras presentes na Torá. E se Deus Mesmo contem forças vivas, na Escritura hebraica presentifica-se a materialidade de uma corrente de elos letrados que estão presentes no movimento interior da própria substancia Divina. Se o axioma cabalístico diz “Deus existe”, o místico deve combinar e recombinar as letras sagradas, interpretando e reinterpretando as leituras de sucessivas ordens que vão se formatando e se multiplicando em nomes e palavras que emergem da decifração ritualística. Os enunciados se multiplicam até que o feitor do rito, num dado momento, “sabe” que tocou em Seu nome. Fica assim “provado” o axioma com o aval da autoridade rabínica que reza pelas Leis e pelos ditâmes que devem ser obedecidos pela comunidade. O leitor pode notar com facilidade que os teoremas que provam Sua existência são hieróglifos que só o místico tem o poder e a sabedoria para decifrar. É sua autoridade, seu dom, que dita a significação que é “lida” nas múltiplas combinações das almas letradas. Os “elementos” materiais com os quais opera a mística judaica são as letras de seu alfabeto sagrado, presentes na Torá.
     Quero agora destacar um fato curioso, peculiar desta técnica de decifração. Não deixa de ser um método perigoso a técnica que leva alguém a fazer contacto com Deus. Eu, de minha parte, acho que quem conversa com Deus é um sujeito religioso, mas, convenhamos, se num contraponto lógico Deus conversar com alguém, este indivíduo é um esquizofrênico. Não afirmo aquí que a mística judaica é coisa de malucos. Tais doutrinas estão perfeitamente vinculadas a uma socialização bastante antiga e sofisticada e seria leviano afirmar que estas comunidades, em suma, nossos ancestrais, eram formadas por conglomerados de doidos. Todavia, há perigo, e as própria autoridades rabínicas sabem disto. Sob ponto de vista lógico formal, “maluco” é uma palavra que possui múltiplos significados. Einstein, numa dada época, vivia dizendo em Princeton que eu ficara maluco por ter votado em Eisenhower.
     Mas eu estava falando da técnica cabalística. Se tal religiosidade crê poder encontrar o Nada que é Tudo, sua thecné se deriva dos fundamentos básicos ou títulos do Sefer letzirá que tratam das letras e de suas combinações. O que me chama a atenção é o fato de num dado momento do ritual, no movimento das letras, há um instante em que o místico chega a fase do “salto”, conforme reza nas Escrituras: “e seu saltar sobre mim era amor”, presente no Cântico dos Cânticos. Em vez de ve-diglo, “e sua bandeira”, o Midrash lê, num jogo de palavras, ve-dilugo, “e seu salto”, ou seja, passam a referir-se ao processo de associação homofônica que seus escritos descrevem. Trata-se, como na matemática pura, de um jogo de linguagem. Com uma diferença: nas leis estabelecidas para a lógica formal, matemática, é proibido trapacear. Enquanto isto, o místico rouba no jogo.
    O tal do “salto” é uma invenção muito inteligente e refinada. Ele modifica a ambiência formal do jogo jogado, e, para eles, isto tem validade durante a partida. É mais ou menos como se eu, estando prestes a receber um xeque-mate numa partida de xadrez, introduzisse no tabuleito uma peça do jogo de damas e saisse comendo todo bispo e toda torre do adversário que visse pela frente. Mas tudo é verdadeiramente muito bonito e bem engendrado. James Joyce disse um dia que “se toda a Igreja Católica foi alicerçada num quebra-cabeça, num puzzle, então é valido eu ter escrito Ulysses, uma obra que nenhum católico deveria ler”. O quebra-cabeça joyceano é YHWH.
     O “salto” dos cabalístas está muito bem descrito num livro de 1295, intitulado Schaarei Tzedek, escrito por um discípulo de Albulafia, um dos Grandes na mística da Cabala. Neste texto ele, o discípulo, ensina que ao executar este “salto” devemos colocar as consoantes nos movimentos combinatórios de forma rápida, acelerada. Tal movimento “aquece” o pensamento e aumenta de tal maneira a alegria e o desejo de fazer contacto com Deus, que a vontade de comer e dormir desaparece. Ele escreve: “Tu te forçarás a ponto de perder o controle de tua consciência natural e, mesmo que desejasses não pensar, não poderias obedecer ao teu desejo. Então guiarás teu pensamento passo a passo, primeiro por meio da escrita e da linguagem, depois através da imaginação”. Este fragmento do texto deixou-me verdadeiramente estupidificado ( no original, truly stupidity – Godel não escreveu este texto em alemão, sabe-se lá por qual motivo ). O sujeito, pela fome, pela insônia, pela leitura fervorosa do Torá, pelo canto ininterrupto dos salmos, pela reclusão, produz uma alteração da própria consciência “até que pela força pura alcances aquele estágio em que não falas nem podes falar”. Ora, se o indivíduo fica tão alterado quanto estes rapazes de hoje em seus transes lisérgicos, é da sopa de letrinhas alucinada que cai o Nome-do-Pai. É notável que toda uma filosofia teológica, e a própria invenção de Deus, tenha sido fundada na lógica de letras presentes e naquelas produzidas pela imaginação estimulada pelo êxtase de um místico doidão. E tudo “por meio da escrita e da linguagem”. Toda a ética do Ocidente se aculturou numa lógica e numa “verdade” desta natureza.
     O rigor da linguagem matemática é completamente outro e é proibido trapacear no jogo. Enquanto a mística judaica se estrutura num constructo social, a matemática se estrutura num constructo formal, destituido de significado ético ou espiritual. O alfabeto lógico é puro alfabeto para fins de combinações subjetivamente dessignificadas no mundo que é cotidianamente “conhecido”. Nosso alfabeto matemático constitui-se de meras materialidades abstratas e formais e só faz sentido dentro do campo da própria matemática.  Hoje, aos setenta anos de idade, concordo com Hegel quando ele diz que a matemática pura produz proposições “mortas e rígidas”. Mas aos vinte e cinco anos eu era absurdamente convicto quanto ao meu desinteresse em relação a conceitos “espirituais”. Hegel escreveu: “A matemática se orgulha e se pavoneia frente a filosofia – pos causa deste conhecimento defeituoso, cuja evidência reside apenas na pobreza de seu fim e na deficiência de sua matéria: portanto, um tipo de evidência que a filosofia deve DESPREZAR”. Apesar do exagero emocional de tal proposição, quando jovem eu achava que pensar em transcendência metafísia era uma crendice improvável e desprezava qualquer noção para além das verdades matemáticas. Por incrível que pareça, meu próprio teorema abalou a onipotência de TODA pesquisa em matemática pura, mas não abalou durante muitos e muitos anos a minha própria, e onipotente, verdade racional.
      Eu crio uma ciência que o metafísico não gostaria de ver. Ele inventa uma lógica na qual eu gostaria, hoje, de ter vivido. Algo está sempre por se completar.
      Para falar um pouco do meu Teorema da Incompletude farei uma nova analogia visando facilitar a comprensão do meu caro leitor sobre o que vem a ser a “prova de Gödel”. Durante dois mil anos a verdade auto-evidente dos axiomas da geometria era inconteste. A verdade e a consistência mútua de todos os teoremas oriundos dos axiomas sempre foram válidas apriorísticamente. A loquacidade silenciosa de meu enunciado afirmava, e provava, a impossibilidade de sistematizar por inteiro o raciocínio da própria ciência matemática. Sempre haverá um “furo”, uma fissura, na matemática em-si. A “bomba” não foi pequena.
     Estou velho e alquebrado, mas ainda me lembro de que nos anos trinta, quando meu trabalho surgiu, nem mesmo no meio da comunidade de matemáticos e lógicos, sequer o título de meu trabalho era inteligível. Os termos “Principia Mathematica” presentes no frontispício, extraidos de uma esplêndida obra em três volumes de Alfred N. Whitehead e Bertrand Russel, não constituia nem mesmo um pré-requisito para a pesquisa nos mais diversos campos da matemática.  Tentarei agora dar inteligibilidade a este “pavoneamento”, como diria Hegel. Entendamos o que é “axioma” e “teorema”.
     A analogia é a seguinte: o jogo de xadrez é um jogo de lógica formal. Se me valho deste jogo é porque nele há uma complexidade substancialmente menor em relação a interpretação de um jogo de combinações possíveis no formalismo matemático. Todavia, um sistema formal altamente sofisticado tambem envolve tipos de objetos: os símbolos do “alfabeto”, as combinações de símbolos em fórmulas e as deduções. Estas últimas são as sequências especiais de fórmulas que devem obedecer às regras do jogo. Fica fácil ver que no xadrez o alfabeto é composto por suas peças: os oito peões pretos para um jogador, os oito peões brancos para o outro jogador, os dois bispos, as duas torres, etc. Temos tambem um tabuleiro contendo sessenta e quatro casas pintadas alternadamente em brancas e pretas. Podemos agora dizer que está pronto o sistema formal do jogo de xadrez, ou seja, seus elementos. Em seguida estabelecemos as regras entre as combinações dos símbolos: as posições das “letras” no tabuleiro para o início do jogo, a maneira como cada peça pode se movimenter e o movimento combinatório possível entre elas. Exemplo: os bispos podem mover-se para qualquer casa situada nas diagonais, perto ou distante, casa a casa, sendo que cada lado dispõe de dois bispos, um correndo pelas casas brancas e outro correndo pelas casas pretas. Evidente está que se eu fosse agora descrever passo a passo todos os detalhes pertinentes e mera formalização do jogo e de suas convenções, teria que escrever dúzias de páginas.
     Fato é que não há realidade objetiva no jogo de xadrez. Sua verdade são suas regras, da mesma forma que na matemática, sob o ponto de vista do formalismo, as regras estabelecidas constituem toda a sua verdade. Provando teoremas, vencemos o jogo. E provamos teoremas mostrando como certas sequências não interpretadas, ou seja, sem sigificado, decorrem de sequências anteriores, sequências de “letras”  também não interpretadas, por meio de regras de inferências combinadas. A conclusão é a última ocorrência da sequência: xeque mate! Quando não há vencedor isto signifíca que a verdade derrapou em alguma inconsistência lógica: erro de cálculo! O joguinho é de uma elegância refinadíssima.
     As peças em suas respectivas casas no tabuleiro correspondem aos signos que serão utilizados no cálculo para realizarmos as inferências combinatórias. Suas posições inicais no tabuleiro correspondem aos “axiomas”, ou às fórmulas iniciais do cálculo. Os teormas, ou seja, as posições subsequentes dos sígnos correspondem às fórmulas derivadas dos axiomas. Podemos, por exemplo, produzir um teorema com um significado semântico, uma proposição, deduzida do sistema: se, e somente se, do lado das peças brancas houver dois cavalos e o rei, e, se e somente se, do lado das pretas houver somente o rei, é impossível as brancas imporem um xeque mate às pretas. Se é possível provar matematicamente tal enunciado dentro do sistema, então o teorema é axiomático. SE A PROPOSIÇÃO ACIMA É VERDADEIRA, ELA É DEDUTÍVEL DENTRO DO SISTEMA FORMAL DO XADREZ CLÁSSICO. E assim sucessivamente, por métodos finitários de raciocínio, podemos provar muitos outros teoremas dentro do joguinho.
   Meu Teorema da Incompletude diz o seguinte: É POSSÍVEL DAR EXEMPLOS DE PROPOSIÇÕES VERDADEIRAS, MAS NÃO DEDUTÍVEIS DENTRO DO SISTEMA FORMAL DA MATEMÁTICA CLÁSSICA.
     E provei o paradoxo: xeque mate na matemática em-si!
     Uma conclusão, segundo meus colegas, perigosamente metafísica. Lembro-me de quando um dia perguntei a Bertrand Russel, outro ateu de quatro costados, o que ele faria se um dia econtrasse o Altíssimo no céu: “Senhor, por que não fornecestes mais indícios quanto à Sua existência?”, foi a resposta de Russel.
     Pude demonstrar que uma verdade semântica pode ser independente de uma um sistema formal, separando os crítérios da verdade semântica dos critérios de dedutibilidade formal. Provando que existem proposições aritméticas verdadeiras que não são comprováveis, provei a impossibilidade de provar. E o fiz DENTRO DO PRÓPRIO SISTEMA FORMAL DA MATEMÁTICA. Bingo!
     Se aos três anos de idade eu já me achava mais inteligente que meus pais, daí para desejar ser o matemático mais inteligente dentre os matemáticos, desde os gregos, foi só um pulinho. Restaria provar isto ao mundo com uma prova que prova a impossibilidade de provar”.
     Em 14 de janeiro de 1978 Kurt Ködel morreu de inanição. Havia parado de comer e ninguem conseguiu dissuadi-lo de tal propósito. Ele não compreendia a combinação de arroz, feijão, bife e batata frita configurando uma combinação “saudável”. Sua análise lógica formal das fórmulas presentes entre os elementos contidos em carboidratos, gorduras e proteinas, para ele significavam definitivamente uma conclusão axiomática: “veneno”.
  
      


       

        
                

DIA DO AMOR (Um conto de Natal)

               DIA DO AMOR (Um conto de Natal)
   
     Meu bisavô morreu bilionário. De sua fortuna sempre fez um objeto fantasmático; ningém jamais pôs as mãos nela, sequer a viram. Até hoje. Em vida cerceou-a com uma muralha intransponível, era um mão de vaca e nunca se livrou de uma crônica prisão de ventre, até a merda economizava.
     Em seu testamento só deixou duas linhas. Uma dizia que seu diário só poderia ser lido dez anos após sua morte. Quanto a sua fortuna, na segunda linha profetizou: “Matem-se”. E mais não disse.
     Eis um fragmento de seu diário.
     “Estou chegando aos meus noventa anos de idade e logo morrerei. Tenho um câncer no pâncreas, sou uma relíquia, um ícone pela longevidade, não pelo tumor. Dizem até: um patriarca. A humanidade jamais crescerá. Sorrio.
     A inescrupulosidade pusilânime é a pústula da alma que grassa no dia de um Natal. Questão tão absurda quanto “tanto amor” é a crença que crê no afeto curativo da vida incurável. Morre-se em vida e há sempre alguém supondo que diante do anômalo, do patológico, está colaborando comigo porque me ama, não sabendo que a  morte se administra com gestos onde os fatos do corpo moribundo são radicalmente indecifráveis, indecidíveis e inconsistentes. Vida, morte e amor são apenas e tão somente palavras que se fecham numa verdade datada e portadora de um sentido prodigioso, mitológico, na pessoa do amante de um pâncreas falído, quiçá de um intestino. O verbo, esta insubstância, se pretende salva-vida convicto quanto ao portador de um orgão terminal, mas sempre fracassa ao desamar o sujeito dono da víscera enfêrma. Nem por um atmo de segundo o ato de gerenciar a vida, esta doença, pode ser prescrito sem visar a morte. Mesmo que não se pense na questão, é ela, a morte, a homeopatia da existência. E voce, ao gostar de mim, que gracinha!, é um idiota completo por não saber disto.
     Se trago a luz tais pensamentos é porque a minha honestidade atávica desacredita em Samuel II, 1, 20: “Não o noticieis em Gath, nem o publiqueis nas ruas de Ascalon, para que não se alegrem as filhas dos filisteus, nem saltem de alegria as filhas dos incircuncisos”. Noticiemos e publiquemos, portanto.
     Virtude é saber devolver, num dia de Natal, a dor para o remetente, ou seja, Deus. O amor é o fim ou o início da bagunça? Dia desagradável, desconcertante, avassalador momento e patético instante numa sequência familiar onde a hipomnésia coletiva se metamorfoseia numa “lembrancinha” forçada e forjada. Pior do que se abraçar no face book só existe o abraço no dia do amor. Os nomeados amigos deveriam, isto sim, ser condenados a uma ocultice perpétua.
     Ontem foi dia vinte e cinco de dezembro e tenho uma sobrinha capenga. A cena que vi foi definitiva como marca de minha estrutural alegria melancolica. As coisas da vida, umas são pesadas, outras tambem. Esta menina manca é colérica e este dia, o do Natal, é sanguíneo. Eu tambem sou do tipo forte. Fluidos, bilis e sôpros hipócritas são as neblinas que envolvem o nascimento do Nazareno, comemorado num reflexo afetivo, medular, como se os cristãos fossem, um a um, o cachorrinho de Pavlov. Expansões orgásticas, heréticas, comandam as homenagens no aniversário do Redentor. A manjedoura nunca foi “moderna” e o feno era prosaico, enquanto um bucólico silêncio jazia  emoldurando a cena de Seu nascedouro. Fez-se alí uma pausa, um pit stop, no próprio tempo do mundo. Nos dias atuais não se fabrica mais uma comemoração muda e meditativa e os ruídos natalinos anunciam estertores terminais, lúbricos sim, mas nada sutis. Quando Michelet foi expulso do Collège de France seus alunos bradaram: “Não aprendemos nada com o senhor. Somente nossa alma, ausente, voltou para dentro de nós”.
     Alcançar a profundidade do luto não é velar pelo morto, ao contrário, é afastar-se dele e auscultar em mim traços identificatórios que me assemelham ao dito falecido.  É esta a nobreza das religiões e cultuar o Cristo não é propriamente o que se passa quando autonomia e determinação agonizam ceifadas por uma reunião natalina. O Jesus que viveu naquele tempo, altaneiro, não é o mesmo que se glorificou no dia de ontem, na casa de meu irmão, pai de minha sobrinha capenga. Beber vinho tinto, comer avelã e castanha debaixo de uma árvore confeitada com neve de algodão enquanto fazem quarenta e três graus na temperatura ambiente é coisa para sujeitos, apriorísticamente, portadores, tambem um a um, de grave encefalopatia degenerativa. Cães pavlovianos e cérebros atrofiados, eis o que ontem pude enxergar e escutar na minha família amorosa. Alí ruminou-se irmandades em cruel adaptação ao presépio bonitinho, a vaquinha estava lindinha, dócil signo, comprado com o cartão de crédito estourando no vermelho, onde as prestações se debitam na plenitude do investimento perverso, avêsso a uma ordem e um progresso que jamais aportarão no cais da magna ideação ética de um sonhador: Jesus Cristo. Um homem, um sábio, um profeta. Uma raridade.
     Triunfante em seu fracasso como mônada de um rascunho, cristal sem devir, ortopedia soberana grassando numa sala de visita enfeitada com neve de algodão, minha ceia de natal é um pesado ragú europeu servido a párias e parasitas de repetições compulsivas. É cantata que se quer solene, perene em sorrisos aguados pelo mito da fraternidade, promessa que fenece prometendo, campo de conversações puerís onde a família se diverte em porres que nada têm de homéricos. Pobres ilíadas e odisséias!
     Minha sobrinha é tambem minha afilhada. Seu marchar adernado é o emblema e o fracasso das alegrias e desvarios de minha noite de natal. Submetida a inúmeras intervenções cirúrgicas num período de mais ou menos três meses, aos dez anos de idade, esta quarentona de rosto angular e olhos tristes vive num assombroso retraimente, pregada na cruz da antevida. Numa das vezes que lhe abriram o joelho, de onde pretendiam drenar uma infecção purulenta, dois gorilas em extinção, com títulos de ortopedistas, enfiaram-lhe uma broca motorizada na articulação que lhe trespassou a tíbia, curetando inclusive a cartilagem de crescimento. Não consegui ver alí uma intervenção científica, mas sim um majestoso coito sem consentimento, gado de corte sendo trinchado, uma grande sacanagem em mais uma oficina de lanternagem. Das bactérias ela se curou, mas a perna parou de crescer e, enquanto a outra ia em seu desenvolvimento célere, esta, vitimada pela moto-serra, remanesceu pendurada e flácida no quadril, como o pêndulo de um carrilhão. A coluna vertebral logo empenou-se, apesar do salto do sapato ortopédico, e hoje aquela menina de outrora recusa-se a sair de casa, tombada em seu caminhar como uma torre de Pisa.
     Minha família, assim a vi na noite do tempo, é a paródia definitiva de uma taba corporativista.
     Afinal, resta-lhes o consolo de que logo se conhecerão uns aos outros, ao se iniciar o inventário dos bens do patriarca, eu, sepultado as pressas com todas as honrarias. Entre os humanos só as voracidades individuas os fazem singulares. A atrofia de meus entes (queridos?) designou ontem o epicentro atualizado de todas as famílias em ceias de natal, dia do amor, marcado a ferro e fogo na folhinha da Pirelle, onde ainda prefiro o outonal nu frontal da dama do mês”.
     Alguns parentes meus já ficaram falidos devido ao preço das “custas” inventarias e a guerra entre eles está longe do fim. O velho sabia sobre a alma humana; ninguém ainda viu um tostão.










sábado, 8 de outubro de 2011

Uma Estória em Quatro Imagens

                              Dr. Mario fotografou tio BinBin atacando as torres.
                              Dr. Mario perplexo com o incêndio da Torre Norte( Sul?)
                              Dr. Mario pegando na unha o capitalismo selvagem. O personagem a direita (não significa que eu seja de esquerda), chupando o dedo, não é da minha tribo, ele é um americano desempregado.
                              Dr. Mario chamou a polícia para olhar junto com ele o cú do capitalismo selvagem.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Xuxu com Camarão

  
                   XUXU COM CAMARÃO
     Ontem comi xuxu com camarão. Estava ótimo. Depois, em plena siesta, deitado na rede, percebi que o legume é um lapso. Noventa e oito por cento do xuxu que degustei é água! Fui traído; bebi o almoço.
     O prolapso da língua, sua queda, é mais evidente nos pronunciamentos políticos do que nas rezas religiosas. Há um desvio na anemia verbal de uma Senadora da República, pode ser uma Jacqueline ou uma Roriz, não importa o nome, e o princípio da Verdade é abortado quando suas palavras ofendem nossos tímpanos: escutamos o ruído do ar, onomatopaico, e não o sentido melódico dos fonemas e dos semantemas. O vento do Verbo, nos políticos, nos causa tormento e o suplício, quando tentamos dar sentido as suas falas, emana do nosso sentimento de estarmos sendo traídos. Elas se expressam como os xuxus; parecem sólidos.
     A retórica política, sua habilidade, nos leva a uma idéia de destino. Não o nosso, mas induz ao final de uma ação, a deles, que proscreve o mal e prescreve o bem, ainda o deles, dizendo representar-nos. Está suposto que os nódulos de uma linguagem podem ser cancerígenos, e, se a água areada impregna um verbo, a metástase é inevitável e a violência não é “natural”. Paixão e tortura podem fazer ato oficial e assinado. É preciso, então, voltar ao Homem, e deixar o xuxu parlamentar fazer o seu papel.
     O pseudônimo, como um dos nomes possíveis, é revitalizado levando-nos a comer gato por lebre. Questão de imperícia de quem faz mal o que faz ao não escutar a gramática de um legume mentiroso. O risco de adoecer sem a proteína do enunciado é evidente; o camarão, aí, tem o seu papel mesmo quando nos damos conta de que o referido crustácio tem políticos na cabeça.
     O que nasce deste discurso inanimado é um lugar, vazio, marcando o fim da autoridade e o nascimento de uma dejeção; resto dessignificado e verdade estuprada. O nada humano ou o inumano do aquém do Ser e do espírito são pronunciados com o sotaque de letras mortas, desmaterializadas. Alguem necessita de um político para viver? A côrte brasiliense é necessária ou contingente?
      Nos anos quarenta, in USA, mais de mil prisioneiros – doentes mentais, prostitutas e até crianças – foram infecados deliberadamente com gonorréia e sífilis “para testar as propaladas vantagens da recém-descoberta penicilina” (O Globo, 31/08/2011). In God we trust: no jornal O Gobo já citado lemos que durante quarenta anos cidadãos americanos “infectados com sífilis foram acompanhados pelos médicos – que queriam entender o desenvolvimento da doença – sem receber nenhum tratamento. Pior, eles acreditavam que estavam sendo tratatos pelos cientistas...”.
     Freud (O Mal Estar na Civilização): “Sob circunstâncias propícias, quando estão ausentes as forças anímicas contrárias que as inibem, a agressão cruel se exterioriza também espontaneamente, desmascara os seres humanos como bestas selvagens que nem sequer respeitam os membros de sua própria espécie...Em consequência, o próximo não é somente um possível auxiliar e objeto sexual, mas uma tentação para satisfazer nele uma agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despojá-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo”.
     Somos ou não somos, todos nós, cobaias humanas nas mãos de nossos Soberanos? A bioética do Estado, lá a aqui, em nome de Deus, manipula heróicamente seu próprio ambiente; há meio século a autoridade constituida se especializou em patinar na laminha de seus próprios gonococus. A ciência jamais inventará qualquer vacina para nos proteger dos perdigôtos de um deputado, federal ou estadual.
     Em nosso Congresso Nacional o xuxu gonorrêico, pestilento, anda em alta. Aquilo há muito tempo já virou nosso Museu do Sexo e a promiscuidade corporativista de nossos governantes jamais saberá diferenciar um lapso leguminoso da purulenta infecção cerebral que os assola. Para eles, a cura ainda está longe, o prognóstico é sombrio e nenhum fotoshop de última geração pode disfarçar seu defeituosos sistemas nervosos centrais: eles já nasceram sem neurotransmissores.
 
Foto: a Senadora Jacquelin Moniz (à direita) cuida de seus eleitores e monitoriza suas chances de reeleição.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Conto - O Batizado da Formiga

               O BATIZADO DA FORMIGA
    
     A forma e a matéria são dados que não podem entrar no jogo que faria de ambas uma identidade, uma indistinção. Por isso não seria factível que, um dia, um padre viesse a batizar um inseto. No século XIX um Grande Filósofo já dizia que “colocar a identidade é o mesmo que afirmar a existência de todos os fatos da consciência em mim e não em alguem estranho a mim”. Uma formiga seria a marca da negação do espírito ou a prova espiritual que afirma a impossibilidade de um Absoluto?
     Gregora, minha filha formiga, estava sentada ao meu lado, amuada, e nos dirigíamos, de carro, à outra igreja onde eu tentaria, uma vez mais, encontrar um padre para lhe ministrar o sacramento da Eucaristia. Ela já estava de saco cheio destas andanças, até aqui infrutíferas, mas sempre cedia aos meus apelos. “De novo?”
     “Gregora é o feminino de Gregor?”, o sacerdote me perguntou em sua atroz impaciência para com a minha demanda. “Sim, em homenagem a Kafka, mas devo lhe garantir que ela é deveras asseada”, eu lhe respondi afirmando em seguida que minha filha estava aguardando no carro, estacionado no pátio da igreja.
     Ela surge na porta da sacristia. Para ele, uma aparição! “E tem tambem muita autonomia e mobilidade”, eu disse por entre a névoa de sua incredulidade. Ela realmente nunca ficara paralisada, caída de costas, tentando se resolver com sua patas orquestrando movimentos caóticos, na tentativa de se alocar em decúbito ventral.
     “Meu pai sempre diz que o acidental, eu, sou o traço do contigente e da negação que marca a infinitude do absoluto, positivando-o”. Lá estava ela novamente arruinando e sabotando tudo. Quantas e quantas vezes lhe pedi para fazer cara de idiota em vez de configurar pensamentos de ordem transcendental! Deu-me ganas de deixá-la de castigo: durante uma semana não lhe coço as costas! Sim, porque ela tem mobilidade, mas não tanta.
     “Se Gregora é uma diferença finita ela veio ao mundo para mostrar que nossa Humanidade se fundamenta no outro, e não na identidade infinita”. Quando proferi tal argumento o padre concordou em batizá-la, o que não deixou de me surpreender. Sua formação teológica certamente é bastante sólida, a ponto dele ter dispensado minha filha da obrigação de realizar o curso, “Seis meses?”, de catecismo. Ou teria sido para solucionar logo um pedido tão bizarro?
     No caso de um assassinato, houve há tempo uma certa lei anglo saxã que, mensurando o valor dos cidadãos, estipulava um valor a ser pago aos familiares da vítima, numa escala de quantias crescentes, do plebeu ao rei. Nos arrazoados da  razão sempre haverá lugar para se ajuizar a ordem de grandeza referente ao mercado das almas. Questão de câmbio e atualizações monetárias idenizando lutos e dores. Quanto aos desamparados, paguei pelo ritual a exorbitância do preço de cima. No cimo da tabela do Vaticano, que funcionava as avessas da lei anglo saxã, era bem inflacionada a conversão de um muçulmano, categoria onde Gregora foi “acomodada”.
     Não posso afirmar se foi a cor de minha filha que a incluiu nesta categoria. Da mesma forma meu leitor não pode inferir que escrevo uma fábula. Quando alguem diz que “Voce sabe perfeitamente o que estou querendo dizer”, é porque ele e eu sabemos perfeitamente que não sabemos nada do que se está querendo dizer. Samuel Beckett, quando lhe perguntaram se Godot representava Deus, respondeu: “Se eu quizesse que Godot fosse Deus eu teria escrito ‘Deus’, e não Godot”. To God? Sugiro àquele que agora lê estas linhas se destitua de qualquer intuição intelectiva imediata e simplesmente leia o escrito, monotonamente, sem memória e sem desejo. Nosso saber sensível sempre nos levará a uma analogia “profunda”: lê melhor quem lê na superfície, onde o óbvio não pode ser observado. Um animal não é propriamente um aglomerado de átomos de carbono e um padre só é importante quando o crédulo superestima a crença de que ele, o crente, “é compreendido”. Para escapar do inescapável, a solidão, é necessária a convicção de que todo mundo é igual a todo mundo. Inclusive igual a Deus. Não era o caso de Gregora, ela era atéia.
     E o batizado se deu, como uma honraria e com uma homilía:
     “Hoje batizo este vivente, uma vida, uma sobrevida na hipofísica da existência, talvez um evento obsceno, certamente rebelde a todo conceito. Mas falo tambem sobre aquilo que me anima e interroga: quem será que sairá do limbo? Haverá diferença entre um saber zoológico e outro etológico? Meu gesto é morada e mortalha de todos os amanhãs que reifico agora. O prazer que cala age no mutismo como um morto, assim sendo e por tal causa, discursemos.
     Apresento-me hoje aqui não como vosso humilíssimo servo, tampouco vou me dirigir a Excelsos, Magníficos ou Mui Nobres, nem aos Doutos Senhores, sequer a Graciosos Patronos ou Sábios Cavalheiros. Venho, sim, como um sacerdote de trinta e cinco anos de idade e vocação ministerial, casado, pai e amigo de dois filhos. Gostaria de advertir-lhes que São Pedro tinha sogra e foi o primeiro Papa”.
     E lá ia o pregador afirmando que estava ali para batizar um amendoim, o que para ele seria uma postura assaz cristã, visto que os índios do alto Xingú, quando o planta faz um gesto religioso, pois se sente, ao golpear a terra, pedindo-lhe licença em primeiro lugar.
     “Brevemente abriremos o corpo da mãe terra, nossa Santa Madre Igreja, para semea-la com este pequeno aprendiz do Ser, único aqui que sabe que o tempo não existe, posto que o tempo É. Eis um mestre sem mestrado que venho homenagear nesta homilía cravejada por uma benção. Pronuncio-a como um soldado de Deus que se sabe exterior ao estado do Vaticano...”
     Gregora cochichou em meu ouvido: “Idiota pedante! Aprendiz do Ser??”
     “...inchado por três mil funcionários, orçamentos tendenciosos, carcamanos e padrecos carreiristas, que jamais saberão na prática o que vem a ser uma conferência episcopal. Um dia as mulheres serão sacerdotes, bispos e Papas. Foram elas as primeiras a se encontrarem com Jesus. Não, não estou febril, mas fabril e apologista das diferenças numa mesma humanidade, de fronteiras bem nítidas numa mundialização heterogênea, com caractéres e identidades bem delineadas, matrizes e nutrizes em trocas perenes e sistemáticas, humanidade una, a valorizar suas riquezas e singularidades, amando-se em graciosa dessimetria, já que igualdade cultural é sinônimo de homens sem alma”.
     A esta altura eu cantarolava em silêncio o Chorus and the Glory of the Lord, do Messiah, de Hendel.
     “Este cisco que hoje batizo, guerrilheira cultural, posto que potencial conquistadora de consciências e nunca de poderes, báscula entre uma superação e uma adaptação passiva, de sua espiritualidade, morada de meio neurônio numa abóboda de ar, anuncia-se o pródromo que nada é, podendo assim tudo ser..”
     Ali mesmo, diante da pia batismal e do padre estarrecido, Gregora acendeu um cigarro, soltou duas rodelas de fumaça que ficaram como que estáticas, pairando suspensas no ar, virou as costas e saiu andando calmamente em direção a porta de saída.
     Já do lado de fora da igreja, quando a interpelei, vociferou: “Que eu ature, vindo deste bostinha, uma macilenta teologia da libertação nesta altura do campeonato, ainda vai! Mas ‘meio neurônio numa abóboda de ar’ é a puta que o pariu!!”
     E saiu caminhando apressadamente para não sei onde.
    






Longo Aforisma sobre o Nosso Reto

                LONGO AFORISMA SOBRE O NOSSO RETO
     Os pré socráticos pensavam por linhas tortas mas, antes do advento Sócrates, o torpedo, como só havia pensamento forjados por linhas tortas ninguém sabia que as ditas pré-linhas eram tortas. Sócrates, o torpedo, inventou um troço que chamou de maiêuitica, técnica do discurso dialogado, organizou o bla-bla-bla e disse: Pitágoras, Parmênides e Hipócrates só falam por linhas...tortas. O que Sócrates não sabia, e morreu sem saber, é que se ele não tivesse lido as ditas linhas, tortas?, ele não teria fundado o discurso maiêutico, o reto conceito. Sem o torto jamais haveria o reto, não o de Sócrates, um Grego aculturado a homossexualidade com seu reto MAIS os meninos mais bonitos. O que o pai da filosofia ocidental deixou como herança foi só o conceito acadêmico, este que não tem a menor serventia para o trivial cotidiano, o reto do conceito conceitual.
     Se hoje o reto está na moda, modernamente a Academia, Palácio da reta filosofia que se diz hegemônica, ocidental e branca, com serteza, com s, made in America, oficializou o reto do corpo e desautorizou a retidão do pensamento ético fundado por Sócrates. No agora e na ágora, Hipócrates é hipócrita e o xerife da lei sêca republicana, no tea party in Rio de janeiro, sonambúlico bêbado de carteirinha, molhou a lei gozando masturbatoriamente na ordem e, húmidamente, dentro da lei MATOU um e aleijou dois; embriagado, o chefe do bafõmetro atropelou o povo e nem se enxugou na própria cueca.
      A linha reta foi FUNDADA pela linha torta da mesma forma que a desrazão funda a razão. Sem os tortos, os empenados, o Pai da filosofia ocidental não teria onde embasar seu pensamento linear, e por isso vos digo: o filho torto é o pai do pai do reto, enquanto o reto do rabo ainda é o do povo.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Ser ou não Ser Maluco

                 SER OU NÃO SER MALUCO
     Há algo no homem que ultrapassa o próprio homem. É a morte. Não a morte biológica, que podemos resolver elaborando-a com ilusões bem arquitetadas e sistematizadas em crenças imaginárias. Se a abelha necessita do pólen, bebemos champanhe e nos alimentamos com os aromas de iguarias e especiarias por razões diferentes do animal com seu outro. A abelha não tempera a flor nem “harmoniza” seu instinto com um vinho francês. Não nos movemos por instintos, mas por desejos. E nosso desejo ultrapassa a natureza, saltando além de necessidades por proteína ou carboidrato. Minha biologia é superada por meu corpo simbólico cuja digestão não obedece as leis da floresta virgem. A selva que habitamos transgride o ecosistema. Não há biologia no desejo. O prazer humano não é natureza, é contranatureza, ou natureza ultrapassada; a vaca não tempera seu pasto com azeite extra-virgem. Um quadro de Michelangelo, ou de Leonardo, “mata” o natural em sua fonte e funda uma outra linguagem disjunta, humana, num além que ultrapassa, perverte e nega as leis do ser com o ser. Os nossos objetos não são inatos e entre o ser do homem e o mundo externo há uma inadequação intransponível: vivemos articulados ao ser com falta. Um leão não mata uma gazela por uma questão política. Entre os humanos é o jogo da linguagem política que leva ao assassinato, até mesmo ao genocídio. O desejo de lucro, simbólico ou imaginário, leva ao crime. Destruimos a fauna e a flora convencidos que estamos de que tal gesto visa um Bem. Quando olhamos para o nosso outro de imediato vemos um inimigo: desconfiamos. Tal paranóia nos estrutura e nos protege. Resta saber de quem ou de que. “Amar ao próximo como a ti mesmo” é uma proposição falaciosa pelo simples fato de que não estou seguro quanto ao que “eu mesmo” desejo. Destituidos de um saber sem dúvidas, torna-mo-nos psicóticos. O esquizofrênico “sabe” que é ameaçado e sua certeza hiperbólica faz dele um delirante. Só não sou maluco porque duvido de minha certeza quanto ao mal do mundo, mas quando duvido de minha certeza quanto ao mal do mundo me sinto desprotegido em relação ao mal do mundo que pode me fazer muito mal. Será que estou ficando maluco?
     Em Dubai enxertaram uma cidade no deserto com campos de gelo artificial para patinação e isto é assassinato. Comprova-se a ficção humana onde o não-lugar real metamorfoseia-se num lugar e uma ausência fundamental é mimetizada por um um símbolo patético, presente. Ao morrer para a natureza o homem se mascara para fingir que existe uma presença metafórica avassaladora matando a coisa desértica. Grave ilusão. O deserto oculto continua discursando travestido pela cidade. E sua loquacidade invisível o torna mais forte do que antes de ser solapado por mãos humanas. Seu espectro nos ronda, seus sinais fazem efeitos no real e as cidades mentem. O Ser da cidade é fake; seu veneno é velado. A polis se quer uma estrada principal mas não nescessitamos de nenhum olhar mais aguçado para percebermos que ela não leva a nada, a lugar nenhum. A cidade se diz vencedora sem saber, ignorante que é, sobre o quão bonito é jogar um jogo correndo o risco de perder. Uma vitória histórica, total, sempre será uma derrota avassaladora. A urbanização obedece a leis teológicas amparadas por rezas e orações canhestras; nenhuma igreja, sinagoga ou mesquita, pode calar o mantra do não-ser, do invisível, do lá-embaixo.
     A microcefalia humana ainda não percebeu que uma árvore jamais pertencerá a um jardim; ela será sempre árvore da floresta e do deserto. É na selva, onde não há política, que vive a verdadeira vida. É no perigo que percebemos: há vida. Os patinadores de Dubai se sentem seguros! Pobres esquiadores de montanhas geladas, sem inverno ou verão! Não há riscos em Dubai. Na jungle real sõ há picadas a serem feitas e descobertas a realizar, enquanto na cidade tudo é mapeado e pronto. Nada mais melancólico do que um mapa turístico ou uma rua sinalizada.
     O que há de mais bonito numa urbe são as graminhas que nascem por entre os paralelepípedos.