quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Conto - O Batizado da Formiga

               O BATIZADO DA FORMIGA
    
     A forma e a matéria são dados que não podem entrar no jogo que faria de ambas uma identidade, uma indistinção. Por isso não seria factível que, um dia, um padre viesse a batizar um inseto. No século XIX um Grande Filósofo já dizia que “colocar a identidade é o mesmo que afirmar a existência de todos os fatos da consciência em mim e não em alguem estranho a mim”. Uma formiga seria a marca da negação do espírito ou a prova espiritual que afirma a impossibilidade de um Absoluto?
     Gregora, minha filha formiga, estava sentada ao meu lado, amuada, e nos dirigíamos, de carro, à outra igreja onde eu tentaria, uma vez mais, encontrar um padre para lhe ministrar o sacramento da Eucaristia. Ela já estava de saco cheio destas andanças, até aqui infrutíferas, mas sempre cedia aos meus apelos. “De novo?”
     “Gregora é o feminino de Gregor?”, o sacerdote me perguntou em sua atroz impaciência para com a minha demanda. “Sim, em homenagem a Kafka, mas devo lhe garantir que ela é deveras asseada”, eu lhe respondi afirmando em seguida que minha filha estava aguardando no carro, estacionado no pátio da igreja.
     Ela surge na porta da sacristia. Para ele, uma aparição! “E tem tambem muita autonomia e mobilidade”, eu disse por entre a névoa de sua incredulidade. Ela realmente nunca ficara paralisada, caída de costas, tentando se resolver com sua patas orquestrando movimentos caóticos, na tentativa de se alocar em decúbito ventral.
     “Meu pai sempre diz que o acidental, eu, sou o traço do contigente e da negação que marca a infinitude do absoluto, positivando-o”. Lá estava ela novamente arruinando e sabotando tudo. Quantas e quantas vezes lhe pedi para fazer cara de idiota em vez de configurar pensamentos de ordem transcendental! Deu-me ganas de deixá-la de castigo: durante uma semana não lhe coço as costas! Sim, porque ela tem mobilidade, mas não tanta.
     “Se Gregora é uma diferença finita ela veio ao mundo para mostrar que nossa Humanidade se fundamenta no outro, e não na identidade infinita”. Quando proferi tal argumento o padre concordou em batizá-la, o que não deixou de me surpreender. Sua formação teológica certamente é bastante sólida, a ponto dele ter dispensado minha filha da obrigação de realizar o curso, “Seis meses?”, de catecismo. Ou teria sido para solucionar logo um pedido tão bizarro?
     No caso de um assassinato, houve há tempo uma certa lei anglo saxã que, mensurando o valor dos cidadãos, estipulava um valor a ser pago aos familiares da vítima, numa escala de quantias crescentes, do plebeu ao rei. Nos arrazoados da  razão sempre haverá lugar para se ajuizar a ordem de grandeza referente ao mercado das almas. Questão de câmbio e atualizações monetárias idenizando lutos e dores. Quanto aos desamparados, paguei pelo ritual a exorbitância do preço de cima. No cimo da tabela do Vaticano, que funcionava as avessas da lei anglo saxã, era bem inflacionada a conversão de um muçulmano, categoria onde Gregora foi “acomodada”.
     Não posso afirmar se foi a cor de minha filha que a incluiu nesta categoria. Da mesma forma meu leitor não pode inferir que escrevo uma fábula. Quando alguem diz que “Voce sabe perfeitamente o que estou querendo dizer”, é porque ele e eu sabemos perfeitamente que não sabemos nada do que se está querendo dizer. Samuel Beckett, quando lhe perguntaram se Godot representava Deus, respondeu: “Se eu quizesse que Godot fosse Deus eu teria escrito ‘Deus’, e não Godot”. To God? Sugiro àquele que agora lê estas linhas se destitua de qualquer intuição intelectiva imediata e simplesmente leia o escrito, monotonamente, sem memória e sem desejo. Nosso saber sensível sempre nos levará a uma analogia “profunda”: lê melhor quem lê na superfície, onde o óbvio não pode ser observado. Um animal não é propriamente um aglomerado de átomos de carbono e um padre só é importante quando o crédulo superestima a crença de que ele, o crente, “é compreendido”. Para escapar do inescapável, a solidão, é necessária a convicção de que todo mundo é igual a todo mundo. Inclusive igual a Deus. Não era o caso de Gregora, ela era atéia.
     E o batizado se deu, como uma honraria e com uma homilía:
     “Hoje batizo este vivente, uma vida, uma sobrevida na hipofísica da existência, talvez um evento obsceno, certamente rebelde a todo conceito. Mas falo tambem sobre aquilo que me anima e interroga: quem será que sairá do limbo? Haverá diferença entre um saber zoológico e outro etológico? Meu gesto é morada e mortalha de todos os amanhãs que reifico agora. O prazer que cala age no mutismo como um morto, assim sendo e por tal causa, discursemos.
     Apresento-me hoje aqui não como vosso humilíssimo servo, tampouco vou me dirigir a Excelsos, Magníficos ou Mui Nobres, nem aos Doutos Senhores, sequer a Graciosos Patronos ou Sábios Cavalheiros. Venho, sim, como um sacerdote de trinta e cinco anos de idade e vocação ministerial, casado, pai e amigo de dois filhos. Gostaria de advertir-lhes que São Pedro tinha sogra e foi o primeiro Papa”.
     E lá ia o pregador afirmando que estava ali para batizar um amendoim, o que para ele seria uma postura assaz cristã, visto que os índios do alto Xingú, quando o planta faz um gesto religioso, pois se sente, ao golpear a terra, pedindo-lhe licença em primeiro lugar.
     “Brevemente abriremos o corpo da mãe terra, nossa Santa Madre Igreja, para semea-la com este pequeno aprendiz do Ser, único aqui que sabe que o tempo não existe, posto que o tempo É. Eis um mestre sem mestrado que venho homenagear nesta homilía cravejada por uma benção. Pronuncio-a como um soldado de Deus que se sabe exterior ao estado do Vaticano...”
     Gregora cochichou em meu ouvido: “Idiota pedante! Aprendiz do Ser??”
     “...inchado por três mil funcionários, orçamentos tendenciosos, carcamanos e padrecos carreiristas, que jamais saberão na prática o que vem a ser uma conferência episcopal. Um dia as mulheres serão sacerdotes, bispos e Papas. Foram elas as primeiras a se encontrarem com Jesus. Não, não estou febril, mas fabril e apologista das diferenças numa mesma humanidade, de fronteiras bem nítidas numa mundialização heterogênea, com caractéres e identidades bem delineadas, matrizes e nutrizes em trocas perenes e sistemáticas, humanidade una, a valorizar suas riquezas e singularidades, amando-se em graciosa dessimetria, já que igualdade cultural é sinônimo de homens sem alma”.
     A esta altura eu cantarolava em silêncio o Chorus and the Glory of the Lord, do Messiah, de Hendel.
     “Este cisco que hoje batizo, guerrilheira cultural, posto que potencial conquistadora de consciências e nunca de poderes, báscula entre uma superação e uma adaptação passiva, de sua espiritualidade, morada de meio neurônio numa abóboda de ar, anuncia-se o pródromo que nada é, podendo assim tudo ser..”
     Ali mesmo, diante da pia batismal e do padre estarrecido, Gregora acendeu um cigarro, soltou duas rodelas de fumaça que ficaram como que estáticas, pairando suspensas no ar, virou as costas e saiu andando calmamente em direção a porta de saída.
     Já do lado de fora da igreja, quando a interpelei, vociferou: “Que eu ature, vindo deste bostinha, uma macilenta teologia da libertação nesta altura do campeonato, ainda vai! Mas ‘meio neurônio numa abóboda de ar’ é a puta que o pariu!!”
     E saiu caminhando apressadamente para não sei onde.
    






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