sábado, 29 de outubro de 2011

DIA DO AMOR (Um conto de Natal)

               DIA DO AMOR (Um conto de Natal)
   
     Meu bisavô morreu bilionário. De sua fortuna sempre fez um objeto fantasmático; ningém jamais pôs as mãos nela, sequer a viram. Até hoje. Em vida cerceou-a com uma muralha intransponível, era um mão de vaca e nunca se livrou de uma crônica prisão de ventre, até a merda economizava.
     Em seu testamento só deixou duas linhas. Uma dizia que seu diário só poderia ser lido dez anos após sua morte. Quanto a sua fortuna, na segunda linha profetizou: “Matem-se”. E mais não disse.
     Eis um fragmento de seu diário.
     “Estou chegando aos meus noventa anos de idade e logo morrerei. Tenho um câncer no pâncreas, sou uma relíquia, um ícone pela longevidade, não pelo tumor. Dizem até: um patriarca. A humanidade jamais crescerá. Sorrio.
     A inescrupulosidade pusilânime é a pústula da alma que grassa no dia de um Natal. Questão tão absurda quanto “tanto amor” é a crença que crê no afeto curativo da vida incurável. Morre-se em vida e há sempre alguém supondo que diante do anômalo, do patológico, está colaborando comigo porque me ama, não sabendo que a  morte se administra com gestos onde os fatos do corpo moribundo são radicalmente indecifráveis, indecidíveis e inconsistentes. Vida, morte e amor são apenas e tão somente palavras que se fecham numa verdade datada e portadora de um sentido prodigioso, mitológico, na pessoa do amante de um pâncreas falído, quiçá de um intestino. O verbo, esta insubstância, se pretende salva-vida convicto quanto ao portador de um orgão terminal, mas sempre fracassa ao desamar o sujeito dono da víscera enfêrma. Nem por um atmo de segundo o ato de gerenciar a vida, esta doença, pode ser prescrito sem visar a morte. Mesmo que não se pense na questão, é ela, a morte, a homeopatia da existência. E voce, ao gostar de mim, que gracinha!, é um idiota completo por não saber disto.
     Se trago a luz tais pensamentos é porque a minha honestidade atávica desacredita em Samuel II, 1, 20: “Não o noticieis em Gath, nem o publiqueis nas ruas de Ascalon, para que não se alegrem as filhas dos filisteus, nem saltem de alegria as filhas dos incircuncisos”. Noticiemos e publiquemos, portanto.
     Virtude é saber devolver, num dia de Natal, a dor para o remetente, ou seja, Deus. O amor é o fim ou o início da bagunça? Dia desagradável, desconcertante, avassalador momento e patético instante numa sequência familiar onde a hipomnésia coletiva se metamorfoseia numa “lembrancinha” forçada e forjada. Pior do que se abraçar no face book só existe o abraço no dia do amor. Os nomeados amigos deveriam, isto sim, ser condenados a uma ocultice perpétua.
     Ontem foi dia vinte e cinco de dezembro e tenho uma sobrinha capenga. A cena que vi foi definitiva como marca de minha estrutural alegria melancolica. As coisas da vida, umas são pesadas, outras tambem. Esta menina manca é colérica e este dia, o do Natal, é sanguíneo. Eu tambem sou do tipo forte. Fluidos, bilis e sôpros hipócritas são as neblinas que envolvem o nascimento do Nazareno, comemorado num reflexo afetivo, medular, como se os cristãos fossem, um a um, o cachorrinho de Pavlov. Expansões orgásticas, heréticas, comandam as homenagens no aniversário do Redentor. A manjedoura nunca foi “moderna” e o feno era prosaico, enquanto um bucólico silêncio jazia  emoldurando a cena de Seu nascedouro. Fez-se alí uma pausa, um pit stop, no próprio tempo do mundo. Nos dias atuais não se fabrica mais uma comemoração muda e meditativa e os ruídos natalinos anunciam estertores terminais, lúbricos sim, mas nada sutis. Quando Michelet foi expulso do Collège de France seus alunos bradaram: “Não aprendemos nada com o senhor. Somente nossa alma, ausente, voltou para dentro de nós”.
     Alcançar a profundidade do luto não é velar pelo morto, ao contrário, é afastar-se dele e auscultar em mim traços identificatórios que me assemelham ao dito falecido.  É esta a nobreza das religiões e cultuar o Cristo não é propriamente o que se passa quando autonomia e determinação agonizam ceifadas por uma reunião natalina. O Jesus que viveu naquele tempo, altaneiro, não é o mesmo que se glorificou no dia de ontem, na casa de meu irmão, pai de minha sobrinha capenga. Beber vinho tinto, comer avelã e castanha debaixo de uma árvore confeitada com neve de algodão enquanto fazem quarenta e três graus na temperatura ambiente é coisa para sujeitos, apriorísticamente, portadores, tambem um a um, de grave encefalopatia degenerativa. Cães pavlovianos e cérebros atrofiados, eis o que ontem pude enxergar e escutar na minha família amorosa. Alí ruminou-se irmandades em cruel adaptação ao presépio bonitinho, a vaquinha estava lindinha, dócil signo, comprado com o cartão de crédito estourando no vermelho, onde as prestações se debitam na plenitude do investimento perverso, avêsso a uma ordem e um progresso que jamais aportarão no cais da magna ideação ética de um sonhador: Jesus Cristo. Um homem, um sábio, um profeta. Uma raridade.
     Triunfante em seu fracasso como mônada de um rascunho, cristal sem devir, ortopedia soberana grassando numa sala de visita enfeitada com neve de algodão, minha ceia de natal é um pesado ragú europeu servido a párias e parasitas de repetições compulsivas. É cantata que se quer solene, perene em sorrisos aguados pelo mito da fraternidade, promessa que fenece prometendo, campo de conversações puerís onde a família se diverte em porres que nada têm de homéricos. Pobres ilíadas e odisséias!
     Minha sobrinha é tambem minha afilhada. Seu marchar adernado é o emblema e o fracasso das alegrias e desvarios de minha noite de natal. Submetida a inúmeras intervenções cirúrgicas num período de mais ou menos três meses, aos dez anos de idade, esta quarentona de rosto angular e olhos tristes vive num assombroso retraimente, pregada na cruz da antevida. Numa das vezes que lhe abriram o joelho, de onde pretendiam drenar uma infecção purulenta, dois gorilas em extinção, com títulos de ortopedistas, enfiaram-lhe uma broca motorizada na articulação que lhe trespassou a tíbia, curetando inclusive a cartilagem de crescimento. Não consegui ver alí uma intervenção científica, mas sim um majestoso coito sem consentimento, gado de corte sendo trinchado, uma grande sacanagem em mais uma oficina de lanternagem. Das bactérias ela se curou, mas a perna parou de crescer e, enquanto a outra ia em seu desenvolvimento célere, esta, vitimada pela moto-serra, remanesceu pendurada e flácida no quadril, como o pêndulo de um carrilhão. A coluna vertebral logo empenou-se, apesar do salto do sapato ortopédico, e hoje aquela menina de outrora recusa-se a sair de casa, tombada em seu caminhar como uma torre de Pisa.
     Minha família, assim a vi na noite do tempo, é a paródia definitiva de uma taba corporativista.
     Afinal, resta-lhes o consolo de que logo se conhecerão uns aos outros, ao se iniciar o inventário dos bens do patriarca, eu, sepultado as pressas com todas as honrarias. Entre os humanos só as voracidades individuas os fazem singulares. A atrofia de meus entes (queridos?) designou ontem o epicentro atualizado de todas as famílias em ceias de natal, dia do amor, marcado a ferro e fogo na folhinha da Pirelle, onde ainda prefiro o outonal nu frontal da dama do mês”.
     Alguns parentes meus já ficaram falidos devido ao preço das “custas” inventarias e a guerra entre eles está longe do fim. O velho sabia sobre a alma humana; ninguém ainda viu um tostão.










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